A Boa-Fé No Contrato de Seguro

Dentre os princípios jurídicos do contrato de seguro a boa-fé funciona como uma espécie de generalização de virtudes

A visão jurídica contemporânea estampa o dever de boa-fé no contrato de seguro, e considera efeitos de nulidade quando ausente esta virtude da convivência.

Dentre os princípios jurídicos do contrato de seguro[1] a boa-fé funciona como uma espécie de generalização de virtudes do homem que vincula o Direito à moral, pressupondo correção de conduta e a preponderância do verdadeiro sobre o falso, do equitativo sobre o desproporcional.

A boa-fé é norma jurídica em inúmeras nações que disciplinam o contrato de seguro. No Brasil, é princípio positivo, previsto no art. 765 do Código Civil, que exige “a mais estrita boa-fé”. É norma que impõe a obrigação recíproca de lealdade e veracidade das partes, desde a formação à resolução do contrato.

O Código de 1916 continha norma similar, no art. 1.443, com obrigações, ao segurado e segurador, da “mais estrita boa-fé” e veracidade de declarações. Clóvis Bevilaqua, que concebeu uma lei avançada para a sociedade da época, comentava que “todos os contratos devem ser de boa-fé, mas no seguro se exige maior energia, porque é indispensável que as partes confiem nos dizeres uma da outra” [2]. Em sua lição, o contrato de seguro nasce do consenso contratual, do acordo de vontades segundo a ordem jurídica, a moral e a confiança recíproca na atuação correta do outro[3].

No princípio da boa-fé está o imperativo de vedação da má-fé, por intolerância às práticas desleais, sujeitas à nulidade[4].

Nessa perspectiva funcional, a boa-fé atua no contrato de seguro como um indicativo de validez, para proteger e penalizar o comportamento das partes[5].

Sabe-se que a ordem jurídica não é referencial de si mesma, e sua estrutura está vinculada à justiça e à verdade[6].  Em tal concepção, a boa-fé se situa na lei e em órbita acima desta, como fonte informadora da produção do Direito, espécie de crivo de ingresso e exclusão do mundo jurídico.

Distingue-se a «boa-fé subjetiva», que se manifesta no pensamento, conforme a moral interior do homem, suas experiências de vida e valores frente às escolhas que faz; e a «boa-fé objetiva», quando se projeta como fato sensível ao mundo exterior, a exemplo dos atos que expressam vontade, por declaração ou comportamento, produzindo fenômeno jurídico.

Sob o ponto de vista da empresa seguradora a boa-fé objetiva está nas exigências de constituição, idoneidade, contabilidade, solvência, subordinação à lei, à ordem econômica, à fiscalização, além do respeito proativo aos acionistas, fornecedores, colaboradores, segurados e consumidores, entre outros stakeholders.

Nos contratos de adesão se manifesta na equivalência das obrigações das partes; no destaque às cláusulas limitativas de direitos do segurado[7]; na boa redação das condições contratuais[8]; além da conformidade frente às obrigações legais e contratuais.

Cabe ao segurador o dever de bem informar[9], desde a fase pré-contratual[10], na publicidade, marketing e questionários, quando deve facilitar a compreensão do segurado, inclusive no preenchimento de formulários[11], passando pelo período da formação contratual, até a extinção do contrato.

Quanto aos demais intervenientes – segurado, tomador, beneficiários -, o princípio da boa-fé incide na veracidade de informações[12]; no dever de não omitir vício intrínseco à coisa segurada[13]; na obrigação de pagar o prêmio[14]; de evitar ou informar o agravamento de riscos[15]; o dever de informar o sinistro e minorar suas consequências[16]; o respeito à sub-rogação do segurador[17]; e a observância geral das obrigações legais e do contrato[18].

A matéria, como se verifica, conduz ao estudo da auto responsabilidade[19], do dever de agir e se comunicar com clareza e correção, sendo que a ausência de boa-fé é vício contratual, com sujeição à ônus e nulidades[20].

Em síntese, este ensaio visa ressaltar o viés jurídico deste princípio e seu papel corretivo, sempre cotejado nas modernas leis de seguro assim como nas obras dos mestres deste Direito.

[1]  Sobre o tema: GRAVINA, Maurício Salomoni, Princípios Jurídicos do Contrato de Seguro. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2015.  S. GRAVINA, Maurício. Princípios jurídicos del contrato de seguro. 1ª ed. Madrid – México – Buenos Aires: Ciudad Argentina – Hispania Libros, 2015.
[2] Na expressão de Clóvis Beviláqua, os contratos, como espécies de atos jurídicos, “estão submetidos aos princípios gerais do justo e do honesto, e devem ser interpretados como atos de boa fé”. BEVILAQUA, Clovis. Op. cit. p. 229 e 573.
[3] DIEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del Derecho Civil patrimonial. Vol. 1º Introducción Teoría del Contrato. 5ª ed. Madrid: Editorial Civitas, 1996, p. 49.
[4] Intolerância à má-fé: Brasil: C.c.“Art. 762. Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.” Espanha: LCS 50/1980 “Art. 19. Portugal: C.com.“Art.º 429. Argentina: LS, arts. 5, 7 e 8. México: C.c. “Art. 1816. LS, “Art. 77. Chile: C.c. “Art. 1546. C.com. “Art. 539.
[5] Cf. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra, Editora Almedina, 2001, p. 513.
[6] Veja-se: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Título Original: A theory of justice. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves, São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 3.
[7] Espanha: LCS, Art. 3.
[8] Italia: C.c.: Art. 1358.
[9] Brasil: C.c.: Art. 759, 760. CDC: “Art. 46. Espanha: LCS 50/1980 art. 3º e 10. França: CA, art. L. 113-2. Portugal: DL 72/2008, art. 21º e incisos. Argentina: LS, art. 5, 7, 8, 48. México: LS, art. 47, 52, 53, 60.  Chile: C.com. art. 539.
[10] Itália: C.c.:“Art. 1337 Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono comportarsi secondo buona fede (1366,1375, 2208).” Portugal: DL n. 176/95, art. 429. Argentina: LS, art. 4 e 11. México: LS, art. 5-10. Chile: C.com. arts. 518–521.
[11] Cf. Acórdão do TJRS – BR (Ap. Civ. 589041169, 5ª C.c., j. 22.8.89, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, in. Jurisprudência TJRS, 1991, 23/119-122), apud. Op. cit. p. 113.
[12] Brasil: C.c.:“Art. 765. Portugal: DL, art. 25. México: LS, art. 60.  Argentina: LS, art. 5-8. Chile:  C.com. art. 539.
[13] Brasil: C.c.:“Art. 784. Não se inclui na garantia o sinistro provocado por vício intrínseco da coisa segurada, não declarado pelo segurado.”
[14] Brasil: C.c: “Art. 763. Não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação.” Espanha: LCS, Art.14. Portugal: DL, art. 58 e 59. México: LS, art. 40. Argentina: LS, art. 31. Chile: C.com. art. 528.
[15] Brasil: C.c.: “Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia… Espanha: LCS, art. 11. França: CA, L-113.9. Argentina: LS art. 38. Chile: C.com. art. 525, 526. México: LS, art. 47.
[16] Brasil: C.c.: “Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que saiba, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as consequências…” Espanha: LCS, Art. 17. Argentina: LS, Art. 72.
[17] Sobre o respeito à sub-rogação do segurador: Brasil: C.c.: 786 e 787. Espanha: LCS, art. 43. França: C.c. art. 1251. Portugal: art. 25 e 26. Argentina: LS, art. 80. Chile: art. 534. México: LS, art. 111, 143 e 163.
[18] Brasil: C.c. arts. 762,765,768,769 e 773.
[19] Sobre boa-fé e dogmática da auto responsabilidade: BETTI, Emilo. Teoría general del negocio jurídico. Trad. A. Martin Perez. Ed. Revista de Derecho Privado. Madrid, 1959, p. 266.
[20] Cf. MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil y comercial. Traducción de Santiago Sentis Melendo. Tomo VI. Buenos Aires. Ediciones Jurídicas Europa-América, p. 165. GARRIGUES, Joaquin. Op. cit. p. 57. BIGOT, Jean. (direcion) Traité de droit des assurances, Tome 3, Le contrat d’assurance. Avec la colaboration de Jean Beauchard, Vincent Heuzé, Jérôme Kullmann, Luc Mayaux e Véronique Nicolas.L.D.G.J – Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, EJA, 2002, p. 61.

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