Noções de Interpretação nos Contratos

Contratos são negócios jurídicos. São atos pelos quais as pessoas regulam seus interesses ou relações.

Contratos são negócios jurídicos. São atos pelos quais as pessoas regulam seus interesses ou relações. Nascem da liberdade de contratar, derivação da livre iniciativa, liberdade pública de reconhecido valor e consistência histórica.

Desde os círculos dos filósofos, à ascensão nas modernas constituições, exortou-se o respeito à dignidade da pessoa, à propriedade e ao trabalho, valores que se acentuaram a partir do século XVIII na Europa, com o propósito de limitar o poder soberano, a exemplo da célebre investida de John Locke contra o absolutismo:
 

“cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos pode dizer-se são propriamente dele” [1].

 

Na esteira da livre iniciativa, da vontade das partes e de manifestações cujos efeitos são reconhecidos pelo Direito, há um relevante espaço conferido aos particulares para a autorregulação de seus interesses. Sabe-se que o ordenamento jurídico “regula a própria produção normativa”[2] e, neste contexto, estabelece um rol de liberdades que confere aos particulares o “poder de negociação”, do qual derivam os contrato.

Para orientar sua interpretação, sintetizo algumas regras de direcionamento, extraídas de leis do Brasil, França, Espanha, Itália, Portugal entre outras nações de semelhante matriz jurídica.

A interpretação dos contratos atua em dois planos: o do «sentido das palavras» e o da «intenção das partes», prevalecendo a última[3]. Se a compreensão pelas palavras é precisa, cumpre limitar-se ao sentido delas, desde que não contrarie a função social do contrato[4], os bons costumes e a ordem pública[5], limitadores da autonomia privada.

Havendo termos suscetíveis de dois ou mais sentidos, deve-se entender no sentido mais conveniente à matéria do negócio, e que possa produzir algum efeito[6].

Se não é fluente a compreensão pelas palavras, supre-se a obscuridade por associações de cláusulas que permitam identificar a vontade e os limites do consenso contratual, com primazia da vontade sobre o escrito.

Para reconstituir a vontade contratual leva-se em conta a formação do negócio e sua execução. Recorre-se às comunicações e ao comportamento das partes[7], antes, durante e após a conclusão do contrato, considerando cartas, fax, e-mails, entrega de mercadoria, serviços, entre outros atos ou documentos que igualmente constituem meios de prova[8].

Nos «contratos consensuais», que não exigem forma escrita, toda comunicação a eles direcionadas podem gerar obrigações[9]. Nos «negócios formais», cuja lei requer instrumento escrito, este é condição de validade e seus anexos e rescisão seguem a mesma lógica da documentação escrita[10].

No plano do sentido das palavras, busca-se compreender o conteúdo das disposições pela combinação de cláusulas[11], impressos e suplementos, de forma que uns complementem os outros, atribuindo às expressões duvidosas o sentido resultante do conjunto destes elementos.

Para expressões de sentido genérico, leva-se em conta o tipo e objeto do contrato (compra e venda, locação, seguro, transporte, mútuo, etc.), pois a substância do negócio é determinante para sua interpretação e definição da lei aplicável[12].

Além disso, qualquer que seja a generalidade de seus termos, não deverá compreender-se coisa distinta daquelas a que as partes se propuseram contratar.

Quanto ao silêncio, também é considerado manifestação de vontade em diferentes ordenamentos jurídicos, segundo os costumes locais[13]. O silêncio nos negócios é aquele que tem o valor de uma linguagem muda, espécie de declaração calada, cotejada caso a caso, conforme o Direito aplicável. A priori, não é reconhecido nos contratos internacionais.

Nos negócios gratuitos ou benéficos[14], a exemplo das doações e cessões de direitos, havendo dúvida sobre o sentido das declarações, deve prevalecer o menos gravoso e em favor da menor transmissão de direitos. Nos negócios onerosos, a dúvida deve ser resolvida em favor da maior reciprocidade nas obrigações das partes[15].

Outro contexto de interpretação está na ponderação da boa-fé[16], relevante princípio jurídico que faz preponderar o verdadeiro sobre o falso, o equitativo sobre o desproporcional. Trata-se de um princípio que visa a conferir lealdade e moralidade aos negócios e ao Direito. Atua como espécie de crivo ético, que traz à tona a ideia naturalista de que a ordem jurídica não é referencial de si mesma. Que sua estrutura está vinculada à justiça e à verdade, segundo John Rawls[17] “a primeira virtude” dos sistemas de pensamento.

Sabe-se que a boa-fé atua sobre o sistema de nulidades dos negócios jurídicos, relevante ao direito das obrigações como um todo, com destaque na proteção da vulnerabilidade, nas relações de consumo, nos negócios processuais, nos contratos à distância ou contratos por condições gerais, entre outros.

Outra fórmula conhecida, desde o Código de Napoleão, diz que a cláusula obscura inserida por um dos contratantes não deve favorecer a quem ocasionou a obscuridade. É a chamada interpretação contra o predisponente[18], prevista nas leis do Direito moderno e na orientação dos Tribunais[19].

Com relação à cláusula arbitral, nos contratos entre pessoas capazes e direitos disponíveis, estando presentes seus elementos centrais e, não se tratando de cláusula patológica, a lide deverá ser dirimida por meio de árbitros, nomeados pelas partes ou pelo órgão arbitral ao qual se vincularam. Referida cláusula é autônoma com relação ao contrato, e confere ao árbitro o poder de decidir sobre sua eficácia e instauração da arbitragem.[20]

No contrato de seguro, em particular, não se espera mobilidade de interpretação e integração hermenêutica, ao ponto de fazer valer circunstâncias não contempladas em lei ou nas cláusulas contratuais. Sobretudo quando estas disposições são capazes de encerrar um entendimento claro (interpretatio cessat in claris). Mesmo relativo ao conceito de claridade, o intérprete deve cingir-se aos limites do contrato, contexto em que a documentação deve servir como referencial de unidade interpretativa, segundo o objeto de cada contrato, considerando-se a tutela da vulnerabilidade e a interpretação contra o predisponente.  A propósito, sabe-se que a interpretação contra o predisponente é importante Princípio dos Contratos do Comércio Internacional – UNIDROIT, cujo artigo 4.6: cuida da “Interpretação “contra proferentem“, com importantes definições no art. 113 do Código Civil Brasileiro e art. 47, do Código de Defesa do Consumidor.

De modo sucinto, em rápida passagem sobre a liberdade de contratar e sua compreensão, sem a pretensão de abranger o extenso estudo da teoria geral dos contratos, destacam-se estes importantes valores de interpretação nos negócios jurídicos, indutores de desenvolvimento e da confiança na atuação do Direito, em especial na capacidade de autorregulação conferida aos particulares.

[1] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo, Tradução Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 45.
[2] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Editora Universidade de Brasília, 1991p.p. 40-45.
[3] Brasil: C.C. “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.” Itália: “Art. 1362 Intenzione dei contraenti: Nell’interpretare il contratto si deve indagare quale sia stata la comune intenzione delle parti e non limitarsi al senso letterale delle parole. Per determinare la comune intenzione delle parti, si deve valutare il loro comportamento complessivo anche posteriore alla conclusione del contratto.”
[4] Brasil: C.C. “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”
[5] Itália: C.C. “Art. 1343. Causa illecita. La causa è illecita quando è contraria a norme imperative, all’ordine pubblico o al buon costume (prel. 1, 1418, 1972).”
[6] Itália: C.C. “Art. 1367 Conservazione del contrato: Nel dubbio, il contratto o le singole clausole devono interpretarsi nel senso in cui possono avere qualche effetto, anziché in quello secondo cui non ne avrebbero alcuno (1424).”
[7] Portugal: C.C. “Art. 35, 2. O valor de um comportamento como declaração negocial é determinado pela lei da residência habitual comum do declarante e do destinatário e, na falta desta, pela lei do lugar onde o comportamento de verificou.”
[8] Itália: C.C. Art. 1.362.
[9] Brasil: C.C. Arts. 107 e 108.
[10] Brasil: C.C. Art. 109. No negócio jurídico celebrado com cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato. “Exemplo: C.C. “Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.” Itália C.C. Art. 1.350.
[11] Itália: C.C. “Art. 1363 Interpretazione complessiva delle clausole: Le clausole del contratto si interpretano le une per mezzo delle altre, attribuendo a ciascuna il senso che risulta dal complesso dell’atto.”
[12] Portugal: C.C. “Art. 35, 1. A perfeição, interpretação e integração da declaração negocial são reguladas pela lei aplicável à substância do negócio, a qual é igualmente aplicável à falta e vícios da vontade.”
Itália: C.C. “Art. 1369 Espressioni con più sensi: Le espressioni che possono avere più sensi devono, nel dubbio, essere intese nel senso più conveniente alla natura e all’oggetto del contratto.”
[13] Brasil: C.C. “Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. Portugal: C.C. “Art. 35, 3. O valor do silêncio como meio declaratório é igualmente determinado pela lei da residência habitual comum e, na falta desta, pela lei do lugar onde a proposta foi recebida.”
[14] Brasil: C.C. “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.”
[15] Itália: “Art. 1371 Regole finali: Qualora, nonostante l’applicazione delle norme contenute in questo capo (1362 e seguenti), il contratto rimanga oscuro, esso deve essere inteso nel senso meno gravoso per l’obbligato, se è a titolo gratuito, e nel senso che realizzi l’equo contemperamento degli interessi delle parti, se è a titolo oneroso.”
[16] Brasil: C.C. “Art. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” C.C.: “Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”; Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possa influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido.”. Italia: C.c.: “Art. 1366 Interpretazione di buona fede: Il contratto deve essere interpretato secondo buona fede” (1337,1371,1375). Portugal: DL, art. 25. Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de julho, Capítulo II – Deveres de Informação. Cód. Comercial, art. 429. México: LS, art. 5-10, art. 60. Argentina: LS, art. 4,5,6,7,8,11. Chile:  C.com. arts. 518–521 e art. 539.
[17] RAWLS, John. Uma teoria sobre a justiça. Trad. Almiro Pisetta e Leinta M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p.3.
[18] Brasil: C.C. “Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.” Itália: “Art. 1370 Interpretazione contro l’autore della clausola. Le clausole inserite nelle condizioni generali di contratto (1341) o in moduli o formulari (1342) predisposti da uno dei contraenti s’interpretano, nel dubbio, a favore dell’altro.”
[19] Sobre interpretação contra o predisponente: STJ. Precedentes: Recurso Especial N° 311.509 – SP (2001/0031812-6), Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira; Recurso Especial Nº 1.133.338 – SP (2009/0065099-4) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino; e, Recurso Especial Nº 1.106.827 – SP (2008/0284799-4) Relator: Ministro Marco Buzzi.
[20] Brasil: Lei 9.307/96, art. 8º. Portugal:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.